quinta-feira, 14 de julho de 2011

História que vovô contava...

HISTÓRIAS QUE VOVÔ CONTAVA
A Disconcordância
                                                                                     José Maurício Guimarães
 
Meu avô ajeitou os óculos na ponta do nariz e começou:
"- Era uma vez, no tempo das carruagens, numa época que a gente amarrava cachorro com linguiça, quando ainda tinha cachorro e linguiça tinha trema - era uma vez  aquele país que tinha muitos ministérios. Um desses ministérios resolveu distribuir um livro de português para turmas de educação de jovens e adultos..."
Esse livro de português chegou até nós. Abrimo-lo e, eis que senão quando, topamos com esse diálogo antigo:
-"Posso falar 'os livro'?
- Claro que pode".
De acordo com a narrativa do vovô, ajeitando os óculos na ponta do nariz,  "foi um deus-nos-acuda. Tamanha foi a barafunda, a estupenda perplexidade, no país dos muitos ministérios, deu-se a ingente grita! até que um acadêmico, presidente do senado, criticou o tal ministério (da educação!) por autorizar a publicação e a distribuição às escolas públicas de livro didático que admitia erros de português".
(E nós que pensávamos que o único erro de português teria sido a sentença assinada por D. Maria I condenando o Alferes Tiradentes a morrer na forca...)
E essa agora? Prenúncios de erro de concordância ainda pior: o presidente do senado não concordou com o ministério da edecação.
O senador acadêmico foi mais longe: "Se não fosse a língua portuguesa, hoje não teríamos esse território imenso que temos"
Desta vez, foi meu neto que fez a indagação: 
Vovô, não consigo entender. Quer dizer que conquistamos esse imenso território na base da conversa? Com a língua?
Ajeitei meus óculos na ponta do meu nariz. Criança tem cada pergunta... e continuei lendo o hebdomadário:
-"Posso falar 'os livro'? - Claro que pode". O escritor Ernani Pimentel, autor do livro Acordo Ortográphico da Língua Portugueza, saiu em defesa dessa construção: "Muitos educadores acham que falar certo é falar rebuscado, mas o falar adequado se dá no momento que seu receptor o compreende." E arrematou: "Eu preciso ensinar o aluno a usar smoking, mas nem sempre ele vai poder usar esta vestimenta. Em algumas situações, ele usará sunga, bermuda ou calça jeans, para que seja bem entendido".
Agora, eu é que não entendi. Suspendi a leitura e fiquei pensando com meus botões (botões da bermuda, entendam bem!) – em quais situações o aluno ou o cidadão usará sunga, bermuda ou calça jeans, para ser bem entendido? Os antigos diziam: para quem sabe ler pingo é letra. Hoje, pelo andar da carruagem, para quem usa sunga, elástico é letra; braguilha é frase e cueca é período composto por subordinação.
O falar erudito é esnobe, dizem os populistas. Portanto, rabisquem ou deletem as expressões acima: abrimo-lo, eis que senão quando, barafunda, a ingente grita - que não deve ser confundida com 'a gente grita'- hebdomadário e período composto por subordinação. Mas, falar errado é crime de lesa-língua, afirmam os (bons) acadêmicos. Mais uma vez sugiro um plebiscito. Os que são a favor da concordância, votem não; os que defende a discordância, votem sim. Ou melhor, os que forem a favor, permaneçam como estão... para facilitar. Depois, é simples questão de definir em lei os hediondos crimes gramaticais e sancioná-los: duzentas e cinquenta chibatadas sem trema em quem falar errado e disconcordar; quatrocentas chibatadas e pena de reclusão por 30 anos para quem escrever em disconcordância de número; detenção e multa de R$5.000,00 para os que corrigirem o certo ou disconcordarem com o errado. Quid juris? dura lex sed lex.  
Não pensem que estou exagerando. Quem leu FAHRENHEIT 451 de Ray Bradbury sabe que é nessa temperatura (correspondente a 232.78 Celsius) que os livro entram em combustão. Não tente fazer isso em casa! O romance, que deu origem ao belíssimo e angustiante filme de François Truffaut, descreve um futuro onde livros são proibidos pelo regime totalitário; se houvesse livros numa casa e o vizinho denunciasse, uma espécie de ministério ou polícia incendiária era acionada para colocar fim na praga das letras. Queimavam todos os livros a 451 Fahrenheit e o resto da casa ia de roldão em mais de 1500º Celsius... Bradbury faz um preâmbulo dessa tragédia profetizando o passado: "... a escolaridade fora resumida, as disciplinas afrouxadas, a filosofia, a história e o estudo das línguas suprimido. A gramática ficou esquecida e a ortografia ignorada. Tudo passou a ser imediatismo, a luta pelo emprego e a busca do prazer a qualquer custo. Para que aprenderiam alguma coisa além de acionar botões, ligar interruptores e apertar parafusos de engrenagens?"
- "Pois é, - prosseguiu meu avô - quando chegarmos nesse ponto não será necessário nem smoking, nem sunga, nem bermuda. Vamos ficar pelados em cima das árvores articulando sons guturais, comendo lesmas e frutos silvestres até que alguém se atreva a andar ereto de novo, inventar a fala e fabricar um machado de pedra lascada. Estaremos literalmente lascados".
Vovô sabia das coisas. Hoje posso escrever do jeito que bem entendo, com os erros que entenderei, cá sou amigo do rei!

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